Parte I
Todo o povo é festivo. Todos brindam à terra com o vinho das uvas locais, todos dançam ao compasso de melodias familiares, todos reconhecem as suas fronteiras no sabor dos seus repastos, todos construem uma escultura de identidade com o mármore da alma. No alto de tudo isto, um santo padroeiro observa as comemorações com olhar doce e aprovador. Não estou com isto a dizer que todo o bairro contém uma tradição popular no verdadeiro sentido do termo, nem que estes bairros devem urdir festividades sem o pollice verso da genuinidade. As festas devem à genuinidade o seu encanto e berço, desde a velha castiça ao jovem enamorado das ruas onde cresceu. O que dizer, então, dos bairros outrora pertencentes à família festiva e que, por uma série de razões e condicionalismos, permitiram a chegada de um certo inverno de cores e tradições? Deste inverno dever-se-ia seguir a primavera das gentes. Não haverá legitimidade local e histórica para a promoção de um regresso? Na parte II contemos uma reflexão acerca desta realidade, invocando as potenciais causas do arrefecimento festivo em determinados bairros e sustentar o porquê de, pelo menos, procurar recuperar esse colorido local.
Parte II
Vildemoinhos é, indiscutivelmente, o maior embaixador popular da cidade de Viseu. A história não deixa a pequena localidade mentir, senhora de longeva e sentida tradição, que preenche, orgulha e pulsa os corações viseenses. Quase 400 anos que ocupam a eterna montra do tempo, com cortejos, festas em honra de São João, criatividade, aromas portugueses e sentimento de dívida e gratidão (recomendo a leitura da história que originou as Cavalhadas, um triunfo poético da justiça popular). Este prelúdio erige as colunas que sustentam a casa de uma tradição (casa e não palácio, pois que as festas populares exigem-se simples e orgulhosamente suaves). A saber: 1 – legitimidade histórica, 2 – vínculo local, 3 – sentimento de pertença 4 – sequência. Vildemoinhos e as suas Cavalhadas apresentam todos estes requisitos. Todavia, existem outros exemplos de tradições festivas que perderam força nos últimos anos, cuja explicação maior deverá passar pelo 4ºponto referido no parágrafo anterior: a sequência. A sequência é o sangue do coração tradicional, que se renova ano após ano. Sem esse sangue, o músculo esquerdino mirra e interrompe a vida. Os moradores são os obreiros da tradição, mas os incentivos agitam os sonolentos e relembram os distraídos. São necessárias pontes entre o povo e organizações festivas, divulgação, cooperação com os comerciantes, colaboração das juntas de freguesia. Marzovelos, bairro da antiga Freguesia Coração de Jesus, é uma excelente referência neste artigo. Desde o do século XVIII até aos primeiros anos do nosso século, a antiga casa dos Condes de Prime, “A Costa de Marzovelos” e, mais tarde, o Bairro de Chévis, com o labor dos habitantes, construíram e deram seguimento a uma tradição que perdeu vitalidade gradualmente até ao seu termo. Não terá, pois, a localidade de Marzovelos, legitimidade histórica para receber a distinta coroa de bairro popular? Não deveria a Junta (e outras) assumir um papel mais ativo no apoio aos moradores? Deixo estas questões a quem de direito. Os Santos Populares engrandecem o nosso país, na sua genuinidade e transversalidade e torná-los cada vez mais nossos depende apenas e só da nossa vontade.
Francisco da Paixão